quinta-feira, 23 de maio de 2019

Capitães de areia (Jorge Amado)


 É Jorge Amado. Ponto. Jorge Amado não é um autor, é um conceito literário. Então é só isso. 




Tinha lido Capitães da Areia na adolescência. Li de novo agora. Como é curioso que a mesma história fale de forma TÃO diferente conosco em diferentes momentos, e ainda mais genial é como é artística a capacidade de um autor escrever histórias que podem ser lidas tantas vezes e em tantas camadas diferentes. Cada dia me emociona mais o aspecto artístico da literatura. 

Se na minha primeira leitura os capitães da areia me eram um grupo de aventuras e bravura infanto-juvenil, com os meus medos das cenas de violência e profundo choque com as cenas de sexo, na leitura de hoje isso não passou de alegoria para entender as personagens. A capacidade de mostrar política e história na vida quotidiana parece tão natural no texto, que, ainda que seja apenas de fora, você compreende absolutamente tudo que aqueles meninos vivenciam. 

O início da narrativa, através de textos jornalísticos pelo olhar de diferentes interlocutores te faz entrar na história dos meninos já completamente integrada ao cenário e os significados que esse cenário representado. A profundidade da construção de cada uma das crianças é inacreditável. É possível realizar uma discussão de horas sobre o que cada uma representa. O líder que encontra seu caminho no movimento sindical, o apaixonado por livros que encontra sua redenção na arte engajada, o que encontra sua trilha na malandragem boêmia, o vaidoso que vive da imagem e dos prazeres do amor e do sexo, aquele que achou a salvação na fé, a figura feminina que aparece para apontar os caminhos e equilibrar, e, como não poderia deixar de retratar, aquele a quem o ódio consumiu e que nenhuma abordagem conseguiu salvar da danação. 

Os personagens secundários também são profundos e completamente necessários à obra. Tanto o padre quanto a mãe de Santo representam também o cenário de exclusão social que "Capitães da areia" retrata, e simboliza que mesmo que a fé não seja a solução para a condição social e política dos excluídos, na prática de vida dessas pessoas, ela é um elemento essencial para se manter vivo na luta diária. 

Outra característica espetacular é a forma que Jorge Amado escreve o livro em episódios. Cada capítulo pode ser lido de forma aleatória ou avulsa e ainda assim será capaz de trazer a aventura e a profundidade do dia a dia daquele grupo que representa um extrato social infelizmente tão atual. Na descrição de cada uma das personagens há uma clara quebra do maniqueísmo tão presente na construção das narrativas. Todos são complexos e diversos, não há heróis ou vilões, o grande vilão é o sistema. 

E como se tudo isso não fosse suficiente, o texto ainda é profundamente lírico em alguns pontos. Como não se emocionar com os meninos andando no carrossel ou com a descoberta do sentimento de amor e cuidado de Sem Pernas quando acolhido como filho de um casal que ensejava enganar, ou ainda com a profundidade da dor da morte de Dora. 

Texto é realmente arte e Jorge amado é mestre. 



"Na noite da Bahia, numa praça de Itapagipe, as luzes do carrossel girariam loucamente movimentadas pelo Sem-Pernas. Era como num sonho, sonho muito diverso dos que o Sem-Pernas costumava ter nas noites angustiosas. E pela primeira vez seus olhos sentiram-se úmidos de lágrimas que não eram causadas pela dor ou pela raiva"

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